Um indie: Spiritfarer

 


                Em relação à jogos, levo comigo uma regra simples e bem pessoal: experimentar de tudo, isso quer dizer, dar uma chance mesmo para aquele jogo acabado pelas críticas ou que está fora do nicho que representa o seu favoritismo ou do gênero que você desconfia que não é o seu tipo. É bem difícil manter essa visão, na verdade. Como jogador entendo que se obrigar a fazer alguma coisa pode ser bastante frustrante, mas limitar-se à própria desconfiança gera preconceitos que acabam impedindo que conheçamos algumas relíquias preciosas que podem não gerar grande efeito numa maioria, mas podem se tornar muito especiais individualmente.

                Assim, eu me ponho a testar o que posso e me esforçar para entender a proposta dos desenvolvedores, quase como um exercício mental periódico que visa furar a minha bolha e abraçar o valor artístico de cada game e sua plateia. Nessa “regrinha de inclusão de jogos”, eu já me deparei com barreiras que até hoje não puderam ser quebradas (por exemplo, quase que de forma unânime, não curto jogos de esporte, como qualquer versão de FIFA, embora já tenha teimado a experimentar algumas vezes, em cada geração) e outras que foram quebradas com estilo, me fazendo reconhecer que ainda há muitas surpresas no mundo dos gamers.

                Essa surpresa trata-se de Spiritfarer, um jogo indie, bastante acolhedor, que carrega o gênero que até então era desconhecido e completamente inédito para mim: o “cozy game” ou, em tradução literal um “jogo aconchegante”.  A esse estilo de jogo também estão enquadrados alguns outros de bastante sucesso, como Stardew Valley e Animal Crossing (provavelmente os dois maiores exemplos contemporâneos), os mais leigos poderiam chamá-lo de “jogo de fazendinha” e os mais criteriosos de “jogo de administração de recursos”, seja qual for o termo utilizado, Spiritfarer é uma ótima experiência inicial para o tipo.

Você no lugar do próprio Caronte

 

                Em Spiritfarer viajamos num mundo 2D que é um tipo de purgatório, embora este nome não contemple a ambientação vívida e tranquila recorrente do jogo. É basicamente um mundo cheio de almas perdidas com assuntos pendentes e que, por isso, não desejam atravessar o Portal Eterno, uma região do mundo onde os espíritos ascendem. Nós controlamos Stella, uma enfermeira enquanto em vida, que recebe a grandiosíssima responsabilidade de tornar-se o novo barqueiro, tomando o lugar do próprio Caronte.

                Stella, entretanto, tem uma forma diferente de enxergar os problemas dessas almas e enquanto ela mesma tenta se convencer da salvação do Portal Eterno, a própria lida com a situação dos outros com paciência e empatia. Essa é a palavra-chave e também a lição deste jogo: empatia.

                Viajando por entre ilhas com um barco que inicialmente representa apenas uma embarcação vazia, Stella acolhe alguns personagens e decide cuidar dos mesmos com atenção especial. Em terra firme essas almas são apresentadas apenas em suas formas fantasmagóricas, mas dentro da embarcação elas ganham vida, nome e forma. Para dar ênfase ao estilo de jogo, os indivíduos auxiliados possuem uma forma (quase sempre) animal, então, sua embarcação abrigará personagens como Alice, uma ouriça; Summer, uma serpente; Olga, uma leoa; Gwen, um cervo e Stanley, um cogumelo.

                Cada indivíduo carrega várias peculiaridades e também um histórico de vida mal resolvido que será responsável por conversas recorrentes e várias pequenas missões a fim de convencer a estes personagens que suas existências em vida não foram simplesmente algo banal. 


 

                Para dar espaço às lamentações e epifanias desses personagens, Stella tem a missão de tornar seu barco o derradeiro lar de cada um desses indivíduos e torná-lo um lugar agradável para se viver levando em conta os pedidos e questionamentos dos moradores. Assim, o jogador administra sua embarcação de modo a transformá-la em um pequeno empreendimento cheio de casas, hortas, fábricas, oficinas, currais e espaços de lazer. Inicialmente comprando alguns aprimoramentos com itens que são encontrados espalhados pelo mundo do jogo e, posteriormente, criando seus próprios itens através da administração recorrente de seu espaço (a própria embarcação).

                Todos os personagens recrutados para fazer a passagem no Portal Eterno são únicos. Alguns serão agradáveis desde o início, outros serão aproveitadores, cínicos, exigentes e soberbos, porém, todos parecem ter uma explicação para seus comportamentos e o enredo se garante ao justificar isso, especialmente nos minutos finais antes do personagem atravessar o Portal Eterno. Essa é parte da missão do jogo: salvar essas almas, convencê-las de serem merecedoras de atravessar o Portal Eterno, convencê-las de que houve legado deixado por estas em vida. Quando preparado, o próprio personagem comunica à Stella e nós viajamos em direção ao centro do mundo onde a luz nos espera.

                O gameplay não poderia ser mais simples (cozy games exigem isso), você ora controla Stella, ora controla o barco viajando por um oceano de ilhas em busca de matéria primeira e almas perdidas. Você produz e coleta madeira, lã, tecido, ferro, pedaços de estrela, pedra e alumínio, aprende a fazer novos pratos juntando ingredientes (cada personagem tem um gosto diferente por comida) e enquanto administra sua embarcação e envia almas para o Portal Eterno, aprendemos pouco a pouco sobre a história da própria Stella e o porquê de ela estar nessa situação pós-morte.

Uma despedida triste, porém, feliz no Portal Eterno.

 

                Spiritfarer é um jogo relaxante. Um jogo para aquelas horas de tédio ou para um jogador que está cansado do desafio apenas pela mera imposição de dificuldade. Ele abre brechas em nossas mentes e quando percebemos estamos planejando o próximo passo que daremos após concluir o simples ato de esquentar um café e, estranhamente, esse fator de gerenciamento provoca um sentimento de calmaria e de controle sem a necessidade de se exasperar por atingir uma meta.

 

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