Não
deve ser surpresa para ninguém o fato de Baldur’s Gate 3 ter vencido o melhor
jogo do ano em 2023. Mesmo os jogadores que não favorecem o nicho reconhecem
que este game superou expectativas na liberdade de escolhas e originalidade da
narrativa, surpreendendo qualquer jogador com as possibilidades infinitas de seus
resultados.
Mas para quem acompanha os jogos
eletrônicos de RPG baseados em Dungeons & Dragons, sabe que essa saga
começou há muito tempo com games de jogatina menos fluente, mas que idealizavam
trazer a liberdade do RPG de mesa para os RPGs eletrônicos. Essa sempre foi a
expectativa dos jogos denominados CRPG (“C” de computer), um subgênero quase
qualificável como americano que, diferente do JRPG (RPG japonês), não abraça o
sistema tático de turnos e tenta dar fluidez na gameplay ao ponto de tentar
convencer o jogador a não notar os turnos, mesmo que eles ainda estejam lá.
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Administrar o inventário em CRPGs é um processo que exige paciência |
Baldur’s Gate 3 abraçou os turnos
e sua estratégia, mas antes disso, muitos CRPGs foram lançados em cenários
oficiais de Dungeons & Dragons e estes ajudaram a formular o que atualmente
este universo pode vir a se tornar e, como Mestre de RPG há muitos anos, eu
torço fortemente para que essa ideia se expanda o máximo possível.
No pacote de CRPGs temos os dois
primeiros Baldur’s Gate (bastante datados, mas que ainda assim tiveram suas
versões lançadas para videogames atuais), além das duologias Icewind Dale e Neverwinter
Nights (aparentemente, apenas o Neverwinter Nights 2 não foi adaptado para
novos consoles). Todos consagrados jogos do gênero que, entretanto, não devem
satisfazer nenhum pouco as expectativas que foram alcançadas em Baldur’s Gate 3,
ainda assim, games maravilhosos e inesquecíveis.
Estou
aqui para falar especificamente de Neverwinter Nights, o CRPG que eu soube da
existência quando a minha vida de rpgista de mesa e especificamente como narrador
de Dungeons & Dragons, estava ainda em seu início, em 2002. Eu estava cada
vez mais imerso num mundo de possibilidades que só o RPG, durante todos esses
anos, pôde me trazer. Eu finalmente tinha uma válvula de escape para
impulsionar minha criatividade, transpor ideias para um papel e compartilhá-las
de forma divertida e convincente para outras pessoas, outros jogadores.
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Dominar o sistema de atalhos é fundamental em Neverwinter Nights, especialmente se você criar um conjurador. |
Enquanto
explorava o assunto na limitada conexão de internet da época me deparei com Neverwinter
Nights, um nome familiar que, assim como Baldur’s Gate, trata-se de uma das
cidades mais clássicas do mundo de Faêrun, do cenário de campanha oficial de Dungeons
& Dragons, denominado Forgotten Realms. Pode parecer brincadeira, mas foram
necessários dias para baixá-lo da única forma possível para a velocidade de
internet da época: o Torrent.
Baixei,
instalei e ao testar, me deparei com outra grande limitação minha da época: o
inglês. Neverwinter Nights é um jogo repleto de narrativa, portanto, horas e
mais horas de texto. A quase infinita quantidade de NPCs com suas histórias,
motivações e pedidos de ajuda; a ficha cheia de números preenchidas manualmente
a cada level up (uma escolha errada poderia acabar com sua build, assim como
ocorre nos RPGs de mesa). Um jogo de início arrastado (e que não agiliza em
qualquer momento), com um combate lento que deixaria qualquer jogador aflito,
reclamando da jogabilidade, especialmente iniciando o jogo com classes mais
dependentes de leitura para mecânica, como bardo ou mago.
Ainda assim, Neverwinter Nights
soava tão mágico, tão influente em mim, que teimei em continuar a jogatina para
fracassar sei lá quantas semanas depois. Nesse meio tempo, nossos aliados sites
de tradução de games distribuíram patches para traduzir esse jogo para o português
brasileiro, então, tentei revisitar o clássico, porém, eu já tinha criado
tantos personagens, já tinha testado tanto da jogabilidade que, simplesmente,
tentar encontrar a cura para a enfermidade que é a quest principal do início da
saga, já não era divertido. Eu precisei de um tempo... de um longuíssimo tempo...
na verdade, de mais de 20 anos!
E nesse extenso período, a desistência
desse jogo martelava aqui e acolá minha consciência. Eu sabia de uma coisa: um
dia retornaria à Neverwinter Nights decidido a completar o jogo e isso
aconteceu em novembro do ano passado, 2024!
Neverwinter
Nights, definitivamente, não é um jogo para qualquer um. É um jogo com traços
fortíssimos dos CRPG de época (como os demais do lote de Dungeons &
Dragons). São muitíssimos trechos de diálogo, um ritmo de exploração
obrigatoriamente lento, mecânica de combate repetitiva e a evolução do
personagem não acompanha o desafio, meio que obrigando o jogador a apelar para
meios que soam como bugs de não-limitação do próprio jogo (pelo menos assim foi
comigo em quase 75% do jogo). Quem já jogou sabe do truque de usar a pedra de
teleporte para se safar de situações perigosas ou se manter numa posição segura
do dragão para tacar-lhe bola de fogo, torcendo para marcar uma boa quantidade
de dano para, então, sair correndo para fora da visão da criatura que pode lhe
matar com um ou dois ataques, enquanto vê seus monstros conjurados e seu
mercenário contratado caírem mortos num estalar de dedos... e isso tudo ocorrendo
enquanto no nível indicado ou ainda maior que o proposto para o desafio.
No
início do jogo você cria um personagem e sua ficha. As escolhas de distribuição
de atributos, raça, classe, talentos e magias são bastante similares ao sistema
Dungeons & Dragons 3.0, com a atribuição de algumas perícias exclusivas
como “aparar”. Se você domina o sistema de RPG, pode distribuir da forma que
lhe achar mais confortável, caso não, o mais aconselhável é escolher as opções
recomendadas (ou ler BASTANTE sobre o que o jogo recomenda na tela de criação
de personagem).
Você, então, é jogado para dentro
de uma guilda comandada por Lady Aribeth. Até determinado momento, você apenas
sabe que foi recomendado a ingressar à ordem devido às suas notórias
capacidades. A primeira hora de jogo é um tipo de tutorial para saber sobre seu
gameplay: combate corpo a corpo e à distância, conjuração de magia, uso de
perícias e comércio. Assim que você realiza obrigatoriamente alguns desses
tutoriais (que varia de acordo com a classe), finalmente você vai conhecer Lady
Aribeth, porém, é exatamente neste momento que a guilda é invadida e arrasada por
uma invasão de goblins.
Você
busca seu caminho sozinho explorando os alicerces da guilda até se reencontrar
com outros sobreviventes (como todo CRPG, daqui você pode ir direto ao ponto ou
remexer em salas e correr o perigo de morrer, que é muito fácil com nível baixo...
mas vale a pena o loot da exploração).
No final dessa sequência de
acontecimentos, e agora são e salvo, você pode falar diretamente com Lady
Aribeth que lhe dará a primeira grande missão (que se esticará pelo primeiro
ato do jogo): encontrar quatro componentes materiais estranhos que, juntos,
podem ser usados para criar uma cura para a praga que assola a cidade de
Neverwinter. Esses itens estão espalhados pelos quatro distritos da cidade e
para conquistá-los, você deve investigar cada distrito afim de encontrar todos,
dá-los à Aribeth e ser recompensado por isso.
Para
mim, talvez porque repeti várias vezes o primeiro ato, essa parte do jogo nos
distritos é a mais longa e a mais cansativa. O jogo melhora muito quando
finalmente podemos sair da cidade e explorar ambientes mais naturais como
florestas, cavernas, cidades fantasmas e até mesmo outros planos de existência.
Durante a narrativa, você deve
fazer escolhas que influenciarão e MUITO os resultados e, talvez, essa seja a
parte mais empolgante do jogo. Suas perícias podem influenciar muito esses
resultados (Blefar e Diplomacia, por exemplo) e até níveis numa classe distinta
podem fazer a diferença. As quests são de uma criatividade surpreendente (que é
bastante comum nas aventuras oficiais de Forgotten Realms lançadas para RPGs de
mesa), desde situações que você precisa lidar com os ataques de uma matilha de
lobos liderada por um lobo inteligente, capaz de falar o idioma dos humanos, que
um dia já foi o companheiro animal de um druida e agora só deseja vingança pela
morte de seu mestre; ou colaborar com um arconte celestial no julgamento de uma
cidade fantasma desolada e pecadora; viajar para um dos planos naturais do
multiverso para acalmar o coração da floresta e impedir que plantas e animais
de uma região ataquem qualquer intruso desavisadamente; procurar por um espelho
mágico que promete trazer beleza para qualquer um que o empunha e agradar uma
bruxa megera para que ela colabore com você; caçar um grupo de assassinos
procurado pela milícia de Neverwinter e decidir se mata-los é a melhor alternativa;
libertar um demônio vrock e aceitar sua oferta de poder ou eliminá-lo de uma
vez por todas; entre outras subquests que acabam sendo obrigatórias não somente
devido à suas criatividades, mas porque evoluir seu personagem é obrigatório
para lidar com os desafios dos próximos atos.
A
mecânica de Neverwinter Nights é a mais simples possível. No PC era apontar e
clicar, no videogame é direcionar o personagem e apertar o botão de ação. O
mercenário (figura extremamente importante para enfrentar os desafios do jogo;
acredito que sem o mercenário, zerar o jogo é quase impossível) toma suas ações
automaticamente, mas você pode conversar com ele para mudar suas estratégias.
Existe um sistema de descanso repetitivo (você apenas pode descansar quando em
ambientes seguros ou longe de qualquer encontro aleatório). Descansar é
frequente nesse jogo, especialmente se seu personagem é dependente de recuperar
habilidades e magias (magos, por exemplo, conjuram uma quantidade de magias por
dia e quando estas acabam, apenas descansar permite recuperá-las). Toda vez que
você aciona o descanso, todas as magias e habilidades ativadas são dissipadas e
isso te obriga a conjurá-las todas novamente (um conjurador como mago e
clérigo, por exemplo, precisa de pelo menos 1 minuto para acioná-las novamente,
uma por uma!).
O
jogo possui um sistema de atalhos que aparecem ao redor do personagem como um
menu, quando segurando os botões R2 ou L2, e como existe uma burocracia referente
a ativar habilidades e conjurar magias, é extremamente sugerível montar seu
guia de atalhos de uma forma a acessar suas opções da forma mais rápida
possível. Enquanto o jogador não dominar esses atalhos, o jogo vai assumir uma
dificuldade muito maior do que a já tem. Seu tempo de resposta para acionar
essas habilidades é muito importante para concluir o jogo.
Provavelmente,
todas essas características discutidas anteriormente são problemas exclusivos de
uma geração que caminhava para se adaptar a um estilo de jogo mais fluido.
Jogadores acostumados a lidar com a maior fluidez desses jogos contemporâneos,
provavelmente vão achar a mecânica de Neverwinter Nights insuportável (eu
mesmo, embora me julgue bastante acostumado com retrogames, muitas vezes me via
frustrado com determinadas situações).
No final das contas, visitar
Neverwinter Nights e zerá-lo 20 anos após a primeira jogatina foi uma experiência
recompensadora, embora precisei apelar para uma resistência que imaginei que
não tivesse. Com certeza, muitas das ideias exploradas no jogo influenciarão
minhas próximas campanhas de RPG. Quer tentar? Prepare-se para dificuldade, não
só devido à mecânica, mas também pelo proposto do jogo. Recomendado apenas para
um nicho bastante acostumado com o gênero.
Duração: 50h+
% Repeteco: 10%
% Recomendação: 40%
Originalidade: comum
Público: quem curte o gênero CRPG; jogadores de RPGs de mesa (especialmente os mais antigos); quem gosta de jogos cuja decisão pode mudar drasticamente a rotina do jogo.
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