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Clair Obscur: Expedition 33

 


Um sopro de esperança

                Me lembro quando o trailer desse jogo foi completamente esnobado na apresentação da Xbox Developer Direct. Como quem não queria nada, o anúncio já revelava um projeto artístico bem polido e diferenciado: uma luta se inicia, seu grupo se posiciona, um monstro terrível vindo de um soulslike se projeta na tela e um menu de opções de combate revela que Clair Obscur: Expedition 33 é um RPG de turno. Completamente ofuscado pelo restante da direct, o game AA precisou esperar sua vez na fila para alcançar o seu prestígio. E que prestígio!

                Para qualquer cristão que nas últimas semanas vem acompanhando mídias sociais e notícias sobre games, é impossível não ter notado o quanto Clair Obscur caiu no gosto do povo o que, pra mim, foi uma grande surpresa, não por duvidar que este era um ótimo jogo, mas porque a enxurrada de admiração compartilhada por este jogo ultrapassou os limites da desconfiança de qualquer gamer... e tenho que confirmar uma coisa: Clair Obscur é MESMO tudo isso que falam (e definitivamente eu não sou do tipo de pessoa que cai na onda).

                Diante uma indústria sofrendo pela megalomania dos acionistas, preços de criação exorbitantes e insustentáveis, falta de criatividade e repetição de estratégias de consumo, Expedition 33 é definitivamente, como eu vi DIVERSAS vezes sendo escrito por aí, um tapa na indústria. Aqui temos um jogo com teor artístico, gráficos deslumbrantes, mecânica inovadora e viciante, trilha sonora inesquecível, personagens cativantes, história e narrativa absurdamente bem construída, reviravoltas convincentes, exploração nada tediosa e muito recompensadora, um ótimo fator replay... bem, é realmente difícil destacar uma falta de acerto nesse jogo, por mais que esse discurso pareça exagerado.

                Clair Obscur é um suspiro na indústria de games por ser um projeto de escopo menor, com orçamento mediano e que alcançou tanto ou mais sucesso que um triple A e, provavelmente vai influenciar a indústria a repensar suas diretrizes se, no futuro, quisermos ter algo sustentável. O que quero dizer com isso é: obviamente grandes projetos são sempre bem-vindos, a prepotência das grandes empresas de criar algo realmente magnânimo não deve ser deixada de lado, afinal, isso já produziu jogos inesquecíveis, porém, a cartada está em deixar o lado artístico e pessoal dos desenvolvedores livre para pensar e formular novas ideias. Em suma, confiar mais na criatividade de quem ama videogame e menos em números e projeção que enfadam os desenvolvedores com o “lance do momento”.

Perfeito da exploração à mecânica de combate

                Clair Obscur é um game que possui um mapa concentrado em conceder a experiência do momento para o jogador. Ele possui um mundo digno de exploração, não tão vasto e colossal quanto diversos sandboxes contemporâneos atulhados de itens desnecessários, subquests nada recompensadoras e caminhos sem saída que estão ali só para dar ao mundo mais alguns quilômetros inertes de existência.

                O mapa nos mostra um mundo aberto com pontos de interesse para progressão do jogo que, ao nos aproximarmos, surge um efeito de transição para uma larga área de exploração preenchida com inimigos responsáveis pelo grind e loot e várias ramificações de caminhos que nos levam a procurar itens, colecionáveis e os cobiçados pictos. O jogo faz de uma forma que torna a caça desses colecionáveis uma ação divertida como pouco tenho encontrado em jogos de mundo aberto. A exploração nesse jogo realmente vale a pena! Podem notar que sempre existe um picto importante que facilitará ou possibilitará a luta contra o “chefão no fim da masmorra”.


 

                Os pictos são um tipo de skill capturada de monstros derrotados ou de itens espalhados pelo mapa. Esse sistema é uma das possibilidades de build do personagem, sendo que cada qual pode atribuir até três deles. Existe uma boa variedade de pictos (capaz de preencher uma tela inteira de seleção) e eles possuem efeitos diversos que propõem que a troca desses seja frequente a fim de lidar com os desafios a frente. Dentre exemplos, existe um picto capaz de regenerar uma quantidade de pontos de vida toda vez que você derrota um monstro; um que lhe concede um ponto de ação para cada parry bem realizado; um que dobra o dano do seu primeiro ataque do combate; um capaz de te imunizar contra efeitos de encanto; etc. etc.

                Após quatro batalhas na posse de um desses pictos, ele então ficará sintonizado com o grupo e poderá ser comprado por pontos de lumina e atribuídos a qual personagem você quiser. Parece complicado, mas uma vez que você entenda o processo, fica bastante interessante formular e reformular a build de seus personagens de acordo com a situação.

                Os pictos e os pontos de lumina são somente duas das mecânicas interessantes de Clair Obscur. Assim como um bom JRPG, ele tem mecânicas e possibilidades de build para mais de metro e é essa versatilidade que compõe a estratégia do jogo o que sempre me chama atenção nos jogos do gênero. Por exemplo, cada personagem tem sua própria mecânica de combate. Lune acumula e consome manchas elementais que são adquiridas quando ele conjura magias; Sciel tem um complexo sistema de predições do sol e da lua que quando acumuladas fortificam suas skills e tornam seus danos aterradores; Maelle possui um sistema de posturas ofensiva e defensiva que geram uma boa estratégia em combate.

                Todos os personagens gastam pontos de ação (PA) para ativar seus poderes. Um ponto de ação ou mais podem ser adquiridos por rodadas: normalmente um ataque base concede um ponto de ação, mas ao ativar determinados pictos, pontos de ação podem ser gerados a partir de parrys ou esquivas perfeitas, além de determinadas ações de status que podem ocorrer em combate (incendiar, quebrar, atordoar, etc.). Os poderes mais absurdamente incríveis chegam a custar o máximo de pontos de ação acumuláveis (9) o que acaba requerendo certa cautela ao analisar sua próxima ação, já que administrar esses PA é parte importante do combate... mais uma vez: parece complicado, porém, parte da diversão está nesse domínio do sistema.

Uma porta de entrada para RPGs de turno?

                Clair Obscur: Expedition 33 é um notório RPG de turno, com elementos de JRPG (embora criado por uma desenvolvedora francesa) que fortalece o gênero. Apesar de não ser o primeiro com um sistema de “aperte o botão na hora certa” (Super Mario RPG, do SNES, já mostrava esse sistema), ele com certeza inovou e subiu vários patamares nessa mecânica, tornando o que poderia ser um combate maçante em um atrativo para jogadores desacostumados com os aspectos dos jogos por turno.


 

                Seria esta então uma ótima porta de entrada para o mundo de JRPGs? ...na minha opinião: não (!), mas é melhor eu me explicar: Clair Obscur é um jogo único e é por isso que ele caiu no gosto das multidões tão rápido. Ele está repleto de novas ideias, criatividade artística, elementos que coincidem com o gosto de uma variedade de jogadores (esquivas e parrys de soulslikes; exploração de mundos abertos e metroidvanias; narrativa épica dos jogos de campanha, etc.). Assim sendo, eu não imagino a maioria dos jogadores que tenha amado Expedition 33, tenha a mesma reação ao dar uma chance aos JRPG contemporâneos como Persona 5 Royal ou Metaphor Refantazio.

                Ele é um ótimo e indispensável jogo por si só. Apesar de ele ter claras inspirações nos últimos citados (as caixas de menu ao redor do personagem durante o combate seguem o mesmíssimo padrão de Persona 5, incluindo a possibilidade de alternar entre disparos, ataques corpo a corpo e skills), Clair Obscur se equilibra perfeitamente bem entre os amantes e os depreciadores de JRPG.

                Obviamente, um jogador de mente mais aberta vai tornar a experiência de Expedition 33 uma ótima carta de boas-vindas para os JRPG contemporâneos, se ele tiver a qualificação de separar as obras da forma como elas foram projetadas para ser. Um jogador que se apaixonou pela complexidade mecânica de Clair Obscur, talvez, sinta na similar complexidade mecânica de Metaphor Refantazio um banquete para se refestelar por altas e altas horas. Um jogador que espere a experiência idêntica, provavelmente vai se frustrar. Tudo é questão pessoal e adaptativa do player. De qualquer forma, com a vinda de vários títulos reconhecidos do gênero nos últimos meses, me parece uma ótima temporada para anular qualquer preconceito com o tipo.

Uma narrativa única, inesquecível, digna de se tornar filme

                [Sem spoiler] Nosso protagonista, Gustave, vive em um mundo assolado pela existência de uma figura enigmática denominada “A Artífice”. Este mundo é bastante baseado na era vitoriana francesa, tanto na arquitetura, quanto música e moda. Longe, atravessando o mar, toda a população de Lumière consegue enxergar um número gigante, dourado e brilhante no horizonte. Este número é a causa da aflição anual desse povo.

                Todos os anos, aquele número reduz uma unidade e, assim que o faz, todas as pessoas que possuam uma idade maior do que o número escrito, esvanecem e desaparecem para sempre. Esse evento é chamado de Gonmage. Acompanhamos, então, Gustave e Sofia, enamorados, num clima de despedida que faz o jogador chorar logo na primeira meia hora de jogo.

                Todos os anos, um grupo de expedição de Lumière é treinado e convocado para tentar impedir a artífice. Eles navegam até a ilha da deidade e enfrentam seus desafios a fim de dar um cabo à criatura... infelizmente, essas expedições já falharam 34 vezes, sobrando para a expedição de Gustave (33) realizar uma nova tentativa.

                A ação do jogo inicia assim que o grupo chega nessa outra “ilha-continente” e a partir daqui qualquer informação pode estragar a jogatina. Esse início e a forma como ele nos é apresentado já é o suficiente para atiçar nossa curiosidade até o final do jogo, porém, Expedition 33 fomentará ainda mais nossa curiosidade com, pelo menos, mais duas reviravoltas no jogo (que possui um total de três longos atos). Nada é o que parece ser e quanto mais o player se aprofunda na história, mas interessante ela fica.

                É mérito dos desenvolvedores de Clair Obscur que a narrativa seja tão interessante e intensa, pois, talvez, se fosse usado qualquer outro método para contar essa história, ela poderia se tornar confusa e pouco atraente, porém, ocorre justamente o contrário (e eu realmente espero que o filme que estão prometendo tenha ao menos metade da genialidade da narrativa do jogo).

                Clair Obscur é uma expressão francesa que pode ser traduzido rasamente para “claro e escuro” e é uma técnica artística que usa contrastes de luz e sombra para criar profundidade e volume numa obra de arte (numa pintura, por exemplo) e isso tem TOTALMENTE a ver com toda história em volta do jogo (não comentada para não provocar spoiler).

Personagens cativantes

                Os personagens de Clair Obscur são carismáticos, únicos e intensamente bem trabalhados em suas naturezas e comportamentos. O jogo em momento algum os abandona, nem deixa de explorar narrativamente suas existências, tornando isso uma parte importante da jogatina. Lune aprendeu a ser racional e distante, canalizou as dores de suas perdas e as transformou em fortaleza, escondendo suas inseguranças através de uma máscara social rígida; Sciel é divertida e de fácil entrosamento, mas tem uma postura de amadurecimento constante, parecendo sempre absorver as mágoas sem se tornar outra pessoa, sem o uso recorrente de máscaras. Essas características são tão profundas e tão inteligentemente utilizadas no jogo (inclusive como parte dos resultados de alguns combates importante).


                É difícil decretar qual dos personagens se tornou o meu favorito, já que todos possuem episódios que provocam grande admiração, ainda que notavelmente sejam demonstrados como meros humanos numa situação de constantes derrotas. As expressões dos personagens são uma característica icônica de Expedition 33, dificilmente o jogador vai sentir vontade de pular um diálogo.

Um marco na história dos videogames

                Recentemente vi uma postagem colocando Clair Obscur: Expedition 33 no mesmo patamar dos mais icônicos jogos da indústria (junto à Chrono Trigger, The Legend of Zelda e Red Dead Redemption, que são jogos que fazem parte de um cânone constantemente citado como os jogos mais influentes dos videogames) e eu poderia ter recebido essa informação com certa estranheza, porém, após mastigar todo o cenário em que esse jogo se encontra, a rapidez com a qual um filme dele foi anunciado e a provável projeção dos inúmeros jogos que tornarão este um alicerce para criação de várias franquias “expeditionslike”... prefiro contemplar positivamente a chance disso acontecer, pois, claramente, este jogo merece.

                Clair Obscur é uma Indicação quase infalível.



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