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Um indie: Celeste

 

Amo jogos indies.

A forma como os criadores de alguns jogos indies contemporâneos tentam implementar a jogatina com conceitos poéticos e filosóficos me encanta. Você começa a jogar esperando um joguinho simples, por vezes infantil e, de repente, se sente completamente absorvido pela mensagem que o jogo traz... e a gente chega a essa consciência acompanhando um enredo simples, focado na existência do personagem e em suas motivações que logo se tornam nossas!

Celeste tornou-se um dos meus jogos favoritos da vida e é bem estranho relatar isso, uma vez que este jogo um tanto curto e recente entrou no meu TOP 10 tão rápido e de forma tão assegurada que praticamente me obriga a dissecar o jogo na tentativa de convencer a qualquer um que ele realmente vale a pena, porém, não vou fazer isso. Está claro pra mim que apenas um seleto grupo de jogadores teria para com Celeste o carinho que sinto agora.

O enredo é simples: você controla Madeleine, uma garota em pixel, no desafio de escalar uma montanha. Você apenas sabe que tem que subir e que a protagonista se colocou nesta jornada para se desafiar de forma imprudente, embora não saiba muito bem o porquê. Somos então entregues à uma jogabilidade simples e direta, porém afiada: você pula e escala e vai precisar fazer isso por quase uma dezena de horas em terrenos cada vez menos propícios e enfrentando um vilão em sua forma física (ele de fato aparece no jogo) e poética (você só continuará a jornada se quiser). Este vilão é, nada mais, nada menos que a própria Madeleine ou, melhor dizendo, a sombra dela, nomeada Badeleine (percebam os prefixos em "Mad"leine e "Bad"leine, respectivamente os termos louca e má, em inglês).

Trechos de plataforma como este compõem o jogo como um todo, aumentando a cada esquina o desafio de manter-se na escalada. Ninguém disse que o desafio do autoconhecimento é fácil.

 

A simplicidade prolixa...

Uma das motivações que me envolveram com Celeste é ter sabido, por meio de pesquisas, que sua profundidade é maior do que aparenta. Olhando por um lado filosófico, Madeleine mostra ao jogador o interesse quase subjetivo de lidar com as próprias emoções e é justamente esse elemento que a narrativa transforma em imagem e som, transforma em algo concreto.

Segundo Carl Jung (psiquiatra criador do termo psicologia analítica que me surpreenderia demais caso os produtores de Celeste não conhecessem sua obra profundamente), a sombra é o lado obscuro da psique, a parte "animalesca" da personalidade humana, que contém desejos e atividades que a sociedade e a própria pessoa não aceitam e esta sombra pode se manifestar de diversas formas: sentimentos negativos, ações explosivas, sonhos e fantasias. Neste conceito enquadramos o lado sombrio de Madeleine, egocêntrico, perverso e manipulador, mas também inseguro, dependente e solitário.

Acompanharemos então o conflito de Madeleine com esse seu lado projetado de forma letal no jogo. Badeleine tentará convencê-la da falta de necessidade de escalar a montanha, de sua incapacidade de fazê-lo, de abandonar a missão pela metade, de tal modo que, se você, jogador, teimar em persistir, o jeito será livrar-se desta má persona. Em algum momento, talvez.

Madeleine e sua sombra. Louca e Má.

... mas não é se livrando de sua essência que você se torna alguém melhor.

Jung acreditava que a sombra é uma realidade não conhecida ou consciente que tem potencialidade e eficácia para influenciar escolhas e decisões. Explorar esta de forma analítica permitiria elaborar conteúdos desconhecidos e reprimidos do indivíduo, chegando a defender que a própria tem um lado positivo, responsável pela espontaneidade, criatividade e emoção profunda, uma superfície tocada por poucas pessoas. Logo, em algum momento, Madeleine não poderá apenas optar por ficar sem sua contraparte e sim aprender a conviver com ela.

O fato deste jogo me privilegiar com este conhecimento, que pode ser absorvido facilmente por qualquer um com acesso à internet, mas que mesmo assim nos falta espontaneidade ou até sabedoria de sua existência para pesquisar, me fez abrir portas tanto para a vida quanto para o mundo indie e a complexidade de suas surpresas.

O jogo, de fato, é um desafio. Haverá muitas "mortes", mas tão rápido quanto morremos, também retornaremos para concluir o desafio do cenário de modo que, também tão rápido, nos acostumaremos com a proposta do jogo. No meu caso, após algumas horas e principalmente após zerar o jogo pela primeira vez, o desafio, apesar de ainda difícil, me traz um relaxamento que a primeiro momento parecia controverso e, não por menos, Celeste acaba sendo um jogo que eu já prometi retornar várias vezes (dificilmente faço isso) com um sorriso no rosto e a minha sombra satisfeita no meu âmago.

Nota pessoal: 10/10
Duração: 9h+
% Repeteco: 99%
% Recomendação: 90%
Originalidade: comum
Público: apreciadores de indies e de um bom desafio (conhece Super Meat Boy?), quem gosta de jogar em portáteis, curiosos em saber porque esse jogo foi indicado ao melhor jogo do ano em 2018.

 

 

 

 

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